CASATELIE

Tamanduateís


Qualquer pessoa que mora em São Paulo sabe que aqui existe um rio chamado Tamanduateí. O que poucos sabem é que o Tamanduateí não é um só rio, mas três.
O primeiro deles está morto há anos; serpenteava pela antiga vila de São Paulo de Piratininga, onde habitavam jesuítas, índios guaianás e portugueses. Não só testemunhou o crescimento dessa vila, como forneceu condições para a formação da futura cidade de São Paulo. No leito daquele rio, as mulheres lavavam roupa, os padres, comerciantes e homens comuns iam embarcados em canoas, os animais de criação bebiam água, caçavam-se patos, rãs e outros animais da fauna fluvial. As casas com os fundos voltados para o rio ganhavam escadarias, onde os moradores podiam atracar seus barcos e pescar. No início do século XX, o prefeito Antonio Prado decide mudar o curso do rio que, domado à força, é reduzido a um estreito canal. A construção do polo petroquímico de Capuava desfere o golpe de misericórdia no primeiro Tamanduateí, que não sobrevive à construção de uma barragem e à poluição de suas águas por dejetos químicos.
O segundo rio é o fantasma do primeiro. Um fantasma muito concreto, rio-zumbi, rio-nóia, correndo pesado nomeio das filas de automóveis. É esse que vemos - ou nem vemos - quando ficamos presos no trânsito da Avenida do Estado. Aquele curso d'água, antes encontro e movimento, agora é a imagem da estagnação e do abandono. O rio perdeu seu espaço para a cidade, nós perdemos a cidade para os carros. Basta caminhar pelos arredores do Parque D. Pedro II, por onde passa o Tamanduateí, para sentir a atmosfera hostil de um espaço pensado para o tráfego, um lugar desertificado, onde o que é humano é marginalizado.
O terceiro Tamanduateí nasce dos outros dois: é um rio de papel que corre no leito vertical dos muros e vigas. As palavras, linhas e figuras negras que se sucedem, feitas a partir de módulos que permitem infinitas composições, lembram destroços sendo carregados pelas águas após uma enchente. O verso citado no trabalho - Já tudo é mar, ao mar já faltam praias - pertence às Metamorfoses de Ovídio. Nesse longo poema, o homem aparece como a criatura que deseja rivalizar com os deuses em suas habilidades e feitos, sofrendo as consequências de sua ousadia. O verso acima refere-se ao dilúvio enviado à Terra pelo deus Júpiter, com a intenção de punir os homens por seus crimes. A retificação do Tamanduateí, que antes serpenteava (lembrando que a serpente já é um símbolo do mal), ganha assim uma insuspeitada dimensão moral: seu emblema invertido é a humanidade de caráter tortuoso, carente de retidão e castigada, ironicamente, pelas águas. No entanto, mais do que denunciar o desencontro entre o rio, a cidade e seus habitantes, essa obra de Paulo Penna quer devolver o rio ao olhar dos passantes, busca espelhá-lo nos muros, para tornar visíveis os significados que ainda carrega, apesar de tudo.



Priscila Sacchettin
2012


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